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Por que o mercado de HQs no Brasil tem cada vez mais obras internacionais

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quem entra hoje numa livraria e vai parar, por acaso ou interesse, na seção de quadrinhos, viaja pelo mundo. Pode ir para a França e além, guiado pelos seios à mostra de “A Louca do Sagrado Coração”, clássico erótico de Moebius e Jodorowsky.

Ou então fazer uma viagem mais curta —no sentido geográfico, mas não no sentido psicológico— para a Argentina de Alberto Breccia e Héctor Oesterheld, que provocam o leitor com o traço mais comportado de Sherlock Time ou com o chiaroscuro inebriante de “Mort Cinder”.

A cada dia HQs de mais países alcançam o mercado brasileiro, o que poderia ser impensável tempos atrás. Essa diversificação nas nacionalidades de obras publicadas aqui tem muito a ver com a chegada dessas obras às livrarias, diz Paulo Ramos, professor da Unifesp e pesquisador da área de quadrinhos. Até os anos 1990, diz ele, HQs eram nativas das bancas de jornal.

Com a exceção de poucos títulos, como o francês “Asterix” e o belga “Tintim”, que saem em formato de livro desde os anos 1970, o mercado era dominado por publicações em revista. Esse espaço era dividido principalmente entre as americanas Marvel, DC e Disney.

Quando o formato em livro começa a ganhar força, sem exigir a periodicidade das publicações em revista, editoras especializadas como a Conrad, a Devir e a Ópera Graphica passam a explorar novos quadrinhos americanos e japoneses e as HQs italianas e francesas ganham atenção.

Com o sucesso desse movimento, grandes casas editoriais passam a ver um novo nicho de leitores, dando origem a iniciativas como o selo Quadrinhos na Cia., da Companhia das Letras, e a editora Nemo, do Grupo Autêntica. Também surgem novas editoras dedicadas apenas às HQs em formato de livro, como a Veneta. O resultado é a pujança que vemos hoje.

“A produção de quadrinhos está maravilhosa”, diz Rogério de Campos, criador e editor-chefe da Veneta, a despeito do que ele chama de “desastre econômico promovido por esse governo, com censura, com o desmonte das estruturas de cultura, dos subsídios, dos incentivos”.

Campos diz que o interesse por novas obras começou de baixo para cima. Jovens com o acesso à internet começam a se informar sobre o que acontecia lá fora e até mesmo a consumir essas obras pela internet, criando um nicho que viria a ser reconhecido. Ele também atribui ao setor público esse êxito.

A partir de 1988, com a Constituição Federal, “uma política de Estado incluiu quadrinhos e os reconheceu como uma forma de linguagem artística legítima e importante para o país”. “E mesmo que o Estado tenha parado agora, não tenha política cultural nenhuma, os artistas pegaram o impulso e continuaram”, afirma.

No final do ano passado, a Veneta publicou “Filho de Ladrão”, adaptação em HQ do romance de mesmo nome do chileno Manuel Rojas pelos também chilenos Christian Morales e Luis Martínez. Na história acompanhamos Aniceto Hevia, que descobre que seu pai não era quem ele acreditava, o que o leva a uma trama sobre os nômades urbanos da América do Sul, que cruzam as fronteiras no continente.

Junto às grandes editoras e a editoras especializadas como a Veneta, surgem casas como a Pipoca & Nanquim e a Comix Zone, que viabilizam a publicação de HQs com a pré-venda das edições na Amazon, e como a Risco e a Figura, que lançam suas obras através de financiamento coletivo pelo Catarse.

Com mais casas editoriais no jogo, aumenta a procura por obras novas, que ainda não tenham seus direitos de publicação comprados —o que promove um novo fôlego de diversificação.

Foi o caso de Rodrigo Rosa, quadrinista, ilustrador e criador, junto a sua mulher, Ivette Giraldo, da Figura. A editora nasceu em 2016 com a publicação de “Sharaz-De”, adaptação de “As Mil e Uma Noites” feita pelo italiano Toppi.

A escolha por começar com a obra desse mestre dos quadrinhos até então pouco conhecido no Brasil vai ao encontro do projeto editorial da Figura, que busca publicar grandes autores que não receberam a devida atenção aqui.

“Autores europeus vêm sendo publicados no Brasil de uma forma um pouco errática desde os anos 1980, mas eu acho que é algo que foi tomar força mesmo a partir dos anos 2000”, diz Rosa, que já publicou nomes como a chinesa Zao Dao e o argentino Alberto Breccia.

Não só publicou Breccia como trouxe ao Brasil seu grande clássico, “Mort Cinder”, que narra o encontro de um homem com o imortal “homem de mil mortes” que dá título à obra. A publicação chamou a atenção de outras editoras para o autor e para os quadrinhos argentinos, que se destacam nesse novo cenário de importações.

“Nunca se publicou tantos quadrinhos argentinos como agora. Existe uma pulverização de conteúdo, a ponto de termos quase toda a obra do Breccia publicada no Brasil, uma coisa que seria impensável há cinco anos”, diz Paulo Ramos, professor da Unifesp e pesquisador do tema.

Esse florescer de quadrinhos argentinos, asiáticos e europeus —e também africanos, chilenos e de cada vez mais origens—, ao lado de um bom momento do quadrinho nacional, é a marca do cenário atual da publicação de HQs no Brasil.

“Isso é algo que estamos tentando fazer nos últimos anos, direcionar a atenção também para artistas europeus e latino-americanos, além do trabalho feito com os brasileiros”, explica Emilio Fraia, editor do selo Quadrinhos na Cia., da Companhia das Letras.

Fraia conta que aprendeu a ler com quadrinhos e desde cedo teve contato com obras que fugiam do cenário mainstream, como a adaptação de Franz Kafka feita pelo argentino Leo Durañona. “Assim como na literatura, esse tipo de variedade sem dúvida enriquece o olhar e a experiência do leitor. A ideia é tentar seguir explorando essa variedade.”

Questionados sobre até onde esse melhor momento do mercado de quadrinhos vai durar, os entrevistados ficam divididos.

Paulo Ramos não é completamente otimista e receia que esse cenário possa ter prazo de validade. “O mercado dos quadrinhos é muito caro. Essa equação talvez se torne insustentável em algum momento.” Já Rosa é mais otimista e acha que a tendência é que o cenário se consolide. Lembra que os leitores têm se mostrado bastante resilientes.

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