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Autor brasileiro que achou telefone de Paul Auster em livro conta como iniciou contato com lenda da literatura

“Nada é real a não ser o acaso”, conclui Paul Auster em “Cidade de vidro”, primeiro volume de sua “Trilogia de Nova York”. O escritor gaúcho Matheus Borges acredita ter comprovado na prática a teoria do autor americano, morto nesta quarta-feira (1), aos 77 anos. Em 2013, então com 20 anos de idade, o autor de “Mil placebos” comprou em um sebo virtual uma edição usada de “Palácio da Lua”, romance de Auster publicado em 1989, que narra a formação de Marco Fogg, um jovem no limiar da vida adulto.

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Ele escolheu a cópia mais barata disponível no site, um exemplar já todo amarelado e cheio de páginas rabiscadas. Ao terminar a leitura, encontrou anotações soltas e um número de telefone na última página. Abaixo do número, um nome, escrito à caneta: “Paul Auster”.

Havia outras pistas naquele velho exemplar, como um segundo nome e diversos números de telefone. Borges jogou o nome no Google e descobriu que se tratava de uma ex-funcionária da editora Companhia das Letras, que passou a publicar o livro em 1997. A sua cópia de “Palácio da Lua”, contudo, era de 1990, e portanto havia sido publicada por outra casa editorial, a Best Seller. Não precisava ser um detetive particular para presumir que o livro tivesse pertencido a uma profissional da edição que ficara interessada em adquirir os direitos para a sua editora.

Borges decidiu jogar com o acaso – ele não tinha nada a perder. Fantasiou que do outro lado da linha poderia surgir a voz de Daniel Quinn, o protagonista de “Cidade de Vidro”.

Autor de romances policiais enlutado pela morte da esposa, o personagem recebe no meio da noite a ligação de um desconhecido que, por engano (?), o toma por “Paul Auster”. O Paul Auster em questão não era o escritor (e autor do livro na vida real) mas sim um detetive particular, que o desconhecido queria contratar para resolver um caso. Quinn abraça a imprevisibilidade e se faz passar pelo detetive. À medida que vai mergulhando no caso, porém, Quinn/Auster percebe que o quebra-cabeças que investiga é mais intrigante do que todas as histórias que ele mesmo já escreveu.

Agora, de volta ao mundo real. Borges ligou para o número anotado, mas ouviu de volta apenas bipes e mais bipes. Mesmo imaginando que o número já havia sido desativado, continuou tentando ocasionalmente por alguns anos – na verdade, sempre no dia do seu aniversário, como uma espécie de ritual.

Demorou quatro anos para que o jovem, nascido em 1992, descobrisse que os bipes em questão eram de um fax, uma tecnologia já anacrônica para a geração dele. Ele lembrou tambem de um livro de correspondências entre Auster e sul-africano nobel de literatura J. M. Coetzee, em que o americano deixa claro ser usuário de fax. Borges, que admite não ser lá muito bom de conversa, viu uma oportunidade. Em vez de falar com o autor, escreveria para ele.

– Foi uma situação esquisita, eu não sabia muito bem o que dizer a ele – lembra Borges. – Então a primeira coisa que eu fiz foi escrever sobre como eu estava escrevendo para ele. A carta virou uma história de si mesma. Meu nome é Matheus Borges, sou de Porto Alegre, etc e tal. Encontrei esse número num livro usado, expliquei que nunca tinha enviado um fax. Falei que eu próprio era escritor, que tinha escrito um livro, no caso o “Mil Placebos”. E mencionei, claro, que a situação era especialmente esquisita por ser ele o autor que era, alguém que costumava abordar episódios como esse em sua ficção.

A história do “número de Paul Auster” virou um clássico entre amigos e parentes de Borges. Alguns chegaram a suspeitar que o próprio Auster anotava seu número em alguns exemplares “premiados”, esperando para ver como seus leitores reagiriam, se iriam copiar a reação de Quinn. Borges usou o aparelho de fax da dinda da namorada e conta que o aparelho foi observado fixamente por semanas. Todos esperavam pela resposta, que só veio em janeiro de 2018, quando Borges reenviou a carta, desta vez através de um aparelho de fax online, mais moderno. Auster, que não tinha email nem computador, respondeu pelo email de uma pessoa próxima. Receptivo e cordial, o escritor agradeceu o contato, elogiou sua “persistência” para chegar até o autor e admitiu que a história podia ter saído de um de seus livros.

– Auster escrevia muito sobre o acaso como uma força, então é como se esse tipo coisa acabasse por fazer parte da vida dele – diz Borges. – Tem um livro dele chamado “O caderno vermelho” em que ele narra diversas histórias verdadeiras e ali fica bem evidente o interesse dele por coisas desse tipo, e também como, a partir do momento em que ele ganhou notoriedade, as pessoas passaram a procurá-lo para contar suas próprias histórias. Nesse sentido eu também sou um personagem do caderno vermelho.

Borges trocaria ainda outras mensagens com Auster, mas o contato não foi além disso. Agora que a esfinge do Brooklyn faleceu, aos 77 anos, o escritor gaúcho volta a pensar sobre o episódio. Para ele, o que ficou não foi tanto o contato, mas “a história em si”.

– Quando ele foi anunciado no Fronteiras do Pensamento, em 2017, muita gente me dizia que agora eu poderia encontrar com ele, etc e tal – lembra Borges. – Mas eu estava meio reticente com a situação, deu até um medo. No fim, o Paul Auster não pôde vir e fez a conferência por vídeo. Foi até um alívio. Acho que a história sempre foi o mais importante pra mim. Porque fez nossas se cruzarem de modo muito mais singular do que um simples encontro.

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